Adauto Botelho: história de abandono que deu lugar à esperança
- Gazeta Goyazes
- 5 de ago. de 2024
- 7 min de leitura
A transição dos antigos manicômios para centros de reabilitação modernos reflete a transformação no tratamento de doenças mentais no Brasil, destacando avanços e desafios.
Por João César Almeida, Lalice Fernandes, Samuel Alves, João Pedro Bolzam e Kamilly Carvalho
As ruínas do extinto Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho, em Goiânia, contrastam com o moderno Centro Estadual de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (CRER). A história desse hospital psiquiátrico revela um passado de maus tratos, enquanto hoje o CRER representa um novo horizonte no tratamento humanizado da saúde mental. O que sobrou da velha construção permanece de pé, como se dissesse à população goianiense que, a partir daquele lugar carregado de horrores, renasce a esperança de um centro de reabilitação referência em todo país.
A modernização das formas de atendimento
Uma história de abandono e sofrimento
O Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho de Goiás, inaugurado na década de 1950, é um símbolo dos desafios enfrentados pela saúde mental no Brasil. Batizado em homenagem ao renomado psiquiatra mineiro, a instituição prometia fornecer tratamento adequado para pessoas com doenças mentais, mas logo se tornou um local de abandono e violência.
Segundo Ronivaldo de Oliveira Rego Santos, professor da PUC/GO que pesquisa sobre a história da loucura em Goiás, o hospital era um lugar onde "não só os loucos" eram internados, mas qualquer pessoa considerada dissidente, incluindo prostitutas, mendigos e crianças com dificuldades de aprendizagem. As condições eram deploráveis, com pacientes vivendo em enfermarias improvisadas, sofrendo com falta de higiene e vestimentas inadequadas.
“Na década de 1950, o estado brasileiro começa a desenvolver uma política de ampliação dos hospitais psiquiátricos, assim como reformas e construção de novos hospitais, de modo que, durante esse período, foram construídas algumas instituições psiquiátricas pelo Brasil. Entre todas essas proposituras estava também o Adauto Botelho de Goiânia, que não é o único com esse nome e nem o primeiro a ser construído. Foram construídas cinco instituições no Brasil com esse nome, uma em Sergipe no ano de 1951, e em 1954 foram inauguradas mais três, no Paraná, Espírito Santo e Goiás, e por fim, em 1957 no Mato Grosso ", conta o historiador.

Locais onde construíram unidades do Adauto Botelho
Houve muito sofrimento entre a década de 1950 e 1980, em relação às pessoas que destoavam dos padrões considerados “normais”, segundo a sociedade, eram marginalizadas e levadas a lugares desumanos, com a promessa de que estariam sendo cuidadas. Não apenas os chamados loucos, (pessoas com doenças mentais) mas também moradores de rua, usuários de drogas, delinquentes que cometeram pequenos delitos, entre outros, sendo comum aparecer nas páginas policiais dos jornais. Na época, quem era tido como defensor da sociedade, na verdade, era quem levava essas pessoas a tamanho sofrimento.
“Quem levava muitas pessoas a serem internadas eram os policiais, eles prendiam essas pessoas e levavam para a instituição. Então, não eram só os loucos, mas é importante pensar que para a época, o louco não é só aquela pessoa com doença mental, são todas aquelas que são consideradas anormais: prostitutas, mendigos, crianças que de um certo modo não aprendem, podemos fazer uma certa analogia hoje com crianças que necessitam de atendimento educacional especializado. Era uma instituição de limpeza de rua. Um dado que coletamos é que em determinado momento o Adauto Botelho tinha cerca de mil pessoas internadas em uma instituição que era para ter 300 leitos mais ou menos", relata Ronivaldo.
Contrastando ao que se vê hoje no CRER, os pacientes sendo bem cuidados e contendo diversos tratamentos humanizados, o Adauto não contava com uma estrutura nem próxima ao adequado para receber os mesmos.
“Quando se chegava lá, o que se tinha era uma instituição inacabada, que ficou durante todo o seu período sendo contestada porque as condições eram ruins. Durante um tempo não teve muro e os pacientes fugiam. Tem relatos de alguns que tentaram fugir e pulavam no Rio Meia-Ponte e morriam. Era uma instituição abandonada, as enfermarias eram galpões, as pessoas comiam com moscas em cima, uma situação degradante. Os pacientes usavam roupas rasgadas ou ficavam nuas. Então era uma situação de duplo abandono dessas pessoas que não tinham pra onde ir, deixadas pela família ou sociedade, que entram em uma instituição também abandonada. Para resumir, o que as pessoas que nós ouvimos diziam “aquilo não era um hospital”.
Com o avanço da medicina, sobretudo no campo da saúde mental, algumas práticas comuns do passado, soam como tortura, mas Ronivaldo explica: “As cenas que temos com mais força são as do eletrochoque, elas são duras, são fortes, mas era o tratamento da época. Falar em tortura é algo muito delicado, pois olhamos com os olhos de hoje. Os médicos não tinham outro mecanismo, por exemplo, o Adauto de Goiás era uma instituição que não tinha muitos medicamentos, então, em muitos casos, a única opção que se tinha para acalmar as pessoas era o eletrochoque, algo que hoje é visto como crueldade e revela nosso avanço no campo da saúde mental.”
Imagens do fotógrafo e cineasta Kim-Ir-Sen, que passou 13 dias no Hospital Adauto Botelho para produzir o documentário “Passageiros de Segunda Classe” (2001).
O hospital foi fechado em meados dos anos 1990, mas não sem deixar cicatrizes profundas: “é uma instituição que leva a marca do progresso quando é criada, depois ela vai construir uma marca muito dura, uma marca traumática de violência no sentido mais cru da palavra, de abandono. E o pior de tudo, é que a instituição deixa uma marca de sofrimento muito grande, principalmente naqueles que estiveram lá dentro, seja internados ou pessoas que trabalhavam”, conclui o historiador.
A modernização das formas de atendimento
O tratamento: do eletrochoque à humanização
Práticas como o eletrochoque eram comuns no Adauto Botelho, mas este era visto como tratamento de última instância na ausência de medicamentos mais eficazes. Hoje, embora o eletrochoque ainda seja utilizado, é aplicado de forma humanizada e com anestesia, como no caso de Roberto*, um jovem de 25 anos que encontrou na Eletroconvulsoterapia (ECT) uma solução após anos de tentativas frustradas com medicamentos para tratar uma depressão severa.
Diagnosticado com depressão há cerca de 5 anos, ele começou uma série de tratamentos para tentar achar uma solução. Começou com antidepressivos, mas pelo fato de ter Transtorno Bipolar não diagnosticado na época, a medicação não funcionou. Mudou a medicação, aumentando e diminuindo a dose, alternou o remédio, e essa foi a rotina do paciente por alguns anos. No meio do caminho teve o diagnóstico de autismo, dificultando ainda mais o tratamento.
Após tentar todas as possibilidades medicamentosas, com acompanhamento de especialistas durante todo o processo, só havia mais duas coisas a fazer: internação ou eletroconvulsoterapia (ECT). A opção foi o ECT, o mesmo tratamento com eletrochoque que era aplicado em pacientes dos antigos manicômios. Começou o tratamento, marcaram uma consulta com a psiquiatra da clínica especializada nessa prática, e após esse momento as sessões foram agendadas.
Dentro da sala, ele se deitava em uma maca, colocava alguns adesivos parecidos com os de eletrocardiograma na cabeça e era sedado. Tudo acontecia com o paciente desacordado e com anestesia geral. Após a sessão, ele acordava em uma enfermaria sem se lembrar muito do que aconteceu, mas, após algumas horas, a memória começava a voltar.
Essa é uma realidade que diversos brasileiros passam ou já passaram, principalmente nos antigos manicômios, onde essas práticas eram usadas para o controle dos pacientes. Mas a principal diferença é que hoje em dia esse tratamento ocorre de uma forma humanizada.
A modernização das formas de atendimento
A modernização das formas de atendimento
Psiquiatras que observavam a forma de tratamento de pessoas com distúrbios no passado, hoje veem que a psiquiatria moderna abrange tanto a biologia quanto a subjetividade humana. Em entrevista com um profissional do CRESM, que preferiu não ser identificado, ele destaca a importância de compreender o ser humano em sua totalidade, integrando aspectos neurobiológicos, culturais e espirituais no tratamento. A evolução científica, com o surgimento de medicamentos como a clorpromazina e o movimento antimanicomial, contribuíram para a transformação do tratamento psiquiátrico. Hoje, os ambientes hospitalares voltados para a psiquiatria priorizam a humanização, oferecendo espaços acolhedores que valorizam o convívio social e o contato com a natureza.
“Mudei-me para Goiás em 2019 para me formar em psiquiatria e, após concluir a residência e duas subespecializações, atuo há três anos tanto no SUS quanto em consultório privado. A psiquiatria é uma especialidade singular e de fronteira, pois abrange tanto o biológico e neurobiológico quanto o psíquico, permitindo um entendimento integral do ser humano, incluindo aspectos sociais, culturais e espirituais. A formação médica básica, por ser extensa, dedica pouco tempo à psiquiatria, geralmente abordada de forma introdutória.”
O profissional destaca que a evolução do atendimento e dos tratamentos farmacológicos foi fundamental para a transformação nas práticas psiquiátricas. "Ambientes hospitalares modernos para apoio psiquiátrico são projetados para serem acolhedores e terapêuticos, priorizando o contato com a natureza, atividades em grupo, música e arte como partes integrais do tratamento. Essas práticas visam desconstruir a antiga imagem dos hospitais psiquiátricos e promover uma abordagem mais humana e compreensiva ao cuidado mental.”
Ruínas do antigo hospital Adauto Botelho de Goiânia, com a imagem do novo CRER ao fundo.
Fotos: João César Almeida
A história do Hospital Psiquiátrico Professor Adauto Botelho serve como um lembrete da importância de tratar a saúde mental com dignidade e respeito. A diferença entre o antigo hospital e o moderno CRER mostra os avanços na área e que, embora o caminho seja longo, a esperança renasce através de práticas mais humanas e integrativas. Mesmo que tenha sido marcada pelo abandono e pela violência no passado, evoluiu para um modelo que busca a humanização e a integração do paciente. O moderno CRER é um dos casos de esperança e progresso do qual sempre será importante para a história da saúde mental em Goiás.
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