Corpos, direitos e liberdade: a batalha pelo aborto seguro em Goiás
- Gazeta Goyazes
- 2 de ago. de 2024
- 17 min de leitura
Atualizado: 5 de ago. de 2024
Apesar da existência de um hospital referência para o procedimento, pessoas que gestam se submetem a práticas inseguras, cenário causado pela dificuldade de acesso ao serviço e leis restritivas
Por Ana Beatriz Milhomem, Andressa Bueno, Lara Paranhos e Maria Eduarda Silva
"Vomitei três dias seguidos. Era pra ter descido ontem… Será que tô ficando paranoica? Eu tomo o remédio direitinho. Se até amanhã não descer, vou fazer um teste.
Não desceu. Comprei o teste. Deu positivo. Ferrou.
Meu namorado disse que vai pagar meu teste de gravidez, mas será que precisa de mais uma confirmação?
Positivo de novo.
Por mais que eu ame crianças, não quero ter uma e jogar meu futuro no ralo. Tenho só 19 anos e não posso largar a faculdade assim. Conversei com meu namorado e vamos comprar as pílulas.
Achei uma moça no Telegram que vende em Brasília. Tá R$490… Vamos pagar, não aguento mais isso.
Levamos um golpe...
Achei outra moça, aqui em Goiânia. Dessa vez, R$600. Ela mandou entregar por um traficante. Vou fazer amanhã antes de ir pro serviço, espero que dê certo.
Introduzi a pílula já tem umas horas e até agora nada, tô com medo de não dar certo. Senti uma pontada de cólica muito forte e deu teto preto. Caí no chão do meu quarto e fiquei desacordada por meia hora… Não chamei nem gritei por ninguém aqui de casa, não podem saber que eu tô fazendo isso…"
Esse é um relato real de uma jovem moradora de Goiânia, que optou por um aborto. Sem uma legislação que lhe garantisse segurança em sua escolha, correu risco e passou pelo processo sozinha. É apenas um dos cerca de um milhão de abortos que ocorrem anualmente no país, segundo o Ministério do Saúde. Em meio às discussões recentes sobre uma legislação restritiva em casos de interrupção da gravidez, parece distante no Brasil o debate a respeito dos direitos de escolha das pessoas que gestam.
Nessa reportagem você irá acompanhar como o aborto é tratado no Estado de Goiás, onde o conservadorismo é um aspecto enraizado e os direitos reprodutivos são negados pela justiça.
O aborto legal e seguro em Goiás

Fachada HEMU, Setor Oeste. Créditos: Foto: Site do Governo do Estado de Goiás.
Em Goiás, entre janeiro e maio de 2024 foram feitos 23 abortos autorizados, 19 em decorrência de violência sexual e 4 por anencefalia do feto (quando o feto apresenta má formação do cérebro ou do crânio). Há um único hospital que faz esse procedimento: o Hospital Estadual da Mulher Dr. Jurandir do Nascimento (HEMU), que está em Goiânia, no Setor Oeste e que anteriormente era anexado ao Hospital Materno Infantil, referência em atendimento pediátrico na capital. Para além de apenas realizar o aborto, o HEMU presta atendimento integral à vítimas de violência sexual, gravidez que gera risco à vida da pessoa que gesta, assim como casos de má formações fetais.
Os pacientes que necessitam de atendimento podem ir ao hospital diretamente ou encaminhados por delegacias, unidades básicas de saúde, conselhos tutelares ou Ministério Público. Agindo de acordo com a Legislação Estadual, que prevê a realização da Interrupção Legal da Gravidez (ILG), a unidade dispõe de uma equipe formada por ginecologistas, enfermeiras, psicólogos e assistentes sociais, que orientam sobre as possibilidades oferecidas pelo hospital.
Em entrevista, a coordenadora da Ginecologia e Obstetrícia do HEMU, Ramylla Teixeira, fala sobre como os estigmas sociais relacionados ao aborto prejudicam a atuação da unidade:
“De modo geral o estigma social e a desinformação sobre o aborto prejudica a sociedade como um todo, inclusive dificultando o acesso das pessoas em vários momentos, como por exemplo em situações em que o medo de revitimização faça com que pessoas que sofrem violência não busquem o serviço logo após o fato, situações em que medidas preventivas podem acontecer, inclusive medidas contraceptivas. Então o estigma social impede sim que pessoas acessem os serviços. Por isso a necessidade de conscientizar a população sobre esses direitos.”
A todos os pacientes são garantidos sigilo e privacidade, tendo uma entrada com local reservado para pessoas que irão realizar o procedimento do aborto, assim como têm uma área específica para a internação. O tratamento psicológico ofertado pelo hospital, na modalidade ambulatorial, tem enfoque breve e direto, quando relacionadas à interrupção da gestação e também é possível que haja o acompanhamento por até seis meses, podendo ser encaminhados para outras redes de cuidado. Para além, vale ressaltar que o HEMU funciona 24 horas por dia, proporcionando o direito ao atendimento para pessoas que gestam e vítimas de violência sexual, também fazendo tratamento para a prevenção de doenças sexualmente transmitidas e a anticoncepção de emergência.
Também é importante ressaltar que, após a 22º semana de gestação, o hospital não realiza mais a interrupção. A partir desse período, apenas três hospitais no Brasil fazem o procedimento, sendo o mais perto de Goiânia o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais.

Abra o gráfico a seguir para ver mais dados relevantes sobre a questão do aborto:
Aborto inseguro: um problema multifacetado
A prática do aborto inseguro é um reflexo direto das barreiras legais e sociais que impedem o acesso a serviços de saúde reprodutiva. Então, a criminalização do aborto leva muitas gestantes a recorrerem a métodos clandestinos e perigosos, agravando a questão de saúde pública. Além disso, a história do aborto é mais antiga do que muitos imaginam, com registros de práticas desde tempos remotos, demonstrando que a interrupção da gravidez é uma realidade que atravessa gerações e culturas.
Os métodos utilizados para a realização de abortos inseguros variam amplamente, mas todos compartilham as características de serem mais acessíveis e, também, extremamente perigosos. Além do uso de medicamentos vendidos ilegalmente, outras práticas incluem a inserção de objetos pontiagudos no útero e a ingestão de substâncias tóxicas como chás, que são tidos como abortivos, e garrafadas feitas com raízes.
Essas garrafadas, preparadas artesanalmente, têm sido utilizadas há séculos como métodos para interromper a gravidez. Sonia Cleide, fundadora do Grupo de Mulheres Negras Malunga e pré-candidata a vereadora em Goiânia, afirmou em entrevista: “Tem vários tipos de raízes, é tudo natural. Não havia remédios como os de hoje, então essas garrafadas eram uma solução que ajudava”. Sua declaração destaca a tradição e a importância dessa prática. No entanto, a continuidade dessas técnicas sem acompanhamento médico ao longo das gerações ressalta a necessidade de alternativas mais seguras e regulamentadas.
Atualmente, a disseminação de métodos para abortar é amplamente facilitada pelas redes sociais e sites, onde as informações são distribuídas sem qualquer supervisão médica ou garantia de segurança. A venda de medicamentos abortivos disfarçados como “suplementos" ou “vitaminas” é um problema ainda mais significativo dentro das redes. Esses medicamentos são adquiridos sem qualquer controle ou orientação médica, muitas vezes por meio de farmácias clandestinas ou anúncios na internet, em grupos de Facebook ou Telegram, por exemplo.
A redação entrou em contato com um dos fornecedores desses anúncios no Estado de Goiás e foi recebida de forma organizada: com mensagens automáticas, um discurso de marketing montado especificamente para fechar as vendas e um grupo de apoio onde clientes compartilham suas experiências, com narrativas bem construídas por informações técnicas. Trata-se da venda de comprimidos à base de misoprostol, substância liberada pela Anvisa para uso em hospitais qualificados e com o devido acompanhamento de profissionais de saúde.
Após o primeiro contato com a vendedora, foi exigida uma identificação, com apresentação de documento, e então a repórter foi incluída num grupo. Lá, as vendedoras alegam ser enfermeiras que, inclusive, já realizaram o procedimento em si mesmas. As clientes recebem promessas de um acompanhamento “profissional” até o final do processo através do WhatsApp, criando uma sensação de segurança. O discurso parece planejado para transmitir confiança e assegurar que o comprador está em boas mãos quando, na realidade, essas práticas expõem as pessoas a riscos significativos e consequências potencialmente fatais.
Mensagens enviadas pelos fornecedores das “vitaminas”, no grupo de vendas.
Como informado neste grupo de vendas, esses medicamentos são enviados pelos Correios escondidos em embalagens de produtos de maquiagem, como o pó solto. Além disso, muitas vezes as vendedoras ainda enviam brindes, como máscaras faciais, ajudando a disfarçar os comprimidos que estão sendo enviados.
Fotos enviadas no grupo de apoio, onde as clientes mostram o produto recebido, juntamente com os "brindes".
Os efeitos do medicamento no corpo podem ser devastadores. A jovem entrevistada anonimamente na abertura da reportagem relata: "Comecei a ficar fraca, com dor de cabeça e cólicas intensas. Passei a manhã mandando mensagem para a moça que me acompanhava e ela dizia que era normal. A dor era tanta que mal conseguia ficar em pé". Essa falta de segurança e acompanhamento especializado expõe as gestantes a riscos graves, destacando novamente a seriedade do problema.
Existe, ainda, outro perigo associado à venda dos comprimidos: a exposição a fraudes e golpes. A jovem ainda compartilha: “Levamos um golpe de R$490,00. A gente teve que ir em Brasília buscar e levou esse golpe. Ficamos mais desesperados”, revelando a vulnerabilidade extrema de quem precisa recorrer a esses meios pela impossibilidade de acesso ao aborto seguro.
Além dos dilemas dos medicamentos, há também uma vasta circulação de informações erradas sobre métodos caseiros. Essas práticas são propagadas em fóruns online e redes sociais, em anúncios que oferecem soluções milagrosas. A desinformação e o fácil acesso a métodos inseguros, combinados com a impossibilidade de se conseguir um procedimento seguro e legal, criam um ambiente perigoso para as pessoas que, muitas vezes, não veem outra saída.
Assim, as consequências dos abortos inseguros são severas e múltiplas. Complicações como hemorragias, infecções, perfurações do útero e lesões intestinais são comuns. Dados do Sistema Único de Saúde (SUS) revelam que, em 2020, mais de 80 mil procedimentos pós-aborto foram realizados devido a complicações decorrentes de métodos inseguros. Esses procedimentos variam desde tratamentos de emergência até cirurgias complexas para reparar danos internos. A taxa de mortalidade materna associada ao aborto inseguro é alarmante. No entanto, muitas mortes são subnotificadas devido à dificuldade de registro adequado.
O aborto inseguro em Goiás exemplifica um problema multifacetado, originado da falta de acesso a serviços legais e seguros, da venda clandestina de medicamentos e da desinformação generalizada. Essa questão exige uma abordagem mais empática e abrangente, que inclua mudanças na legislação, maior acesso a informações corretas e serviços de saúde de qualidade para todas as pessoas que gestam. É crucial reconhecer que a criminalização do aborto não impede a sua prática, mas sim força as pessoas a recorrerem a métodos perigosos e potencialmente letais. Garantir os direitos reprodutivos é uma questão de saúde pública e de direitos humanos, onde a segurança e a dignidade de todos devem ser priorizadas.
O papel da cultura e do conservadorismo do Estado sobre o estigma do aborto
Mesmo décadas após a implementação da primeira lei sobre o aborto no país, o assunto ainda é um tema restrito, principalmente por não ser tratado política e socialmente como uma questão de saúde pública. Discursos religiosos e conservadores ainda permeiam, com muita força, os centros políticos do país e do próprio estado de Goiás, o que dificulta o avanço de políticas públicas e que ofereçam segurança às pessoas que desejam realizar o procedimento. Para Mariana Prandini Assis, doutora em ciência política pela New School for Social Research, graduada em direito pela UFMG e professora da UFG, é possível atribuir a constância do estigma em torno do aborto tanto a fatores tanto sociais quanto religiosos:
“Acho que a causa social [do estigma] seja a mais forte, a ideia de que as mulheres devem ser mães, e que esse é o destino de toda mulher. Por outro lado, há uma crença religiosa de que o aborto é uma violação da vida e uma violação desse “mandato” de maternidade que as mulheres devem cumprir. [...] Também há o estigma que decorre da própria criminalização: o fato do aborto ser um crime contribui para cristalizar essa ideia de que quem faz um aborto está cometendo um crime e deve ser punido severamente”.
Apesar do senso comum coletivo pautar a criminalização do aborto como maneira de inibir a prática, dados revelam que leis restritivas aumentam o número de casos de abortos induzidos e inseguros. De acordo com pesquisa do Instituto Guttmacher, realizadas em 2019, a América Latina é a região com mais leis restritivas no mundo, e com maior número de abortos induzidos e que colocam a vida da pessoa gestante em risco. Além disso, em países onde a prática é legalizada, a realização do procedimento é menor, assim como o número de abortos inseguros.
Esses dados ilustram como a estagnação do debate no campo social e político corrobora para a precarização da oferta de serviços seguros para a pessoa gestante. Em um cenário político marcado pelo conservadorismo, principalmente quando falamos sobre o cenário no estado de Goiás, as vítimas não só não têm acesso aos serviços, mas arriscam suas vidas com procedimentos não seguros.
“Talvez no Estado de Goiás o conservadorismo seja um pouco exacerbado, e, por outro lado, não temos movimentos de esquerda progressista tão fortes quanto em outros estados”, explica Mariana sobre a estigmatização relacionada a valores conservadores no cenário goiano.
A intensa circulação de discursos conservadores e religiosos em Goiás é refletida dentro do próprio campo político do estado, com propostas de lei que recolocam as vítimas em situações de violência e sofrimento. Em 11 de janeiro de 2024, por exemplo, o ex-deputado estadual Fred Rodrigues (Partido Democracia Cristã) criou uma lei que institui uma campanha de “conscientização contra o aborto”, e determina que a mãe receba exames de ultrassom “contendo os batimentos do nascituro”. A lei foi sancionada pelo governador Ronaldo Caiado e prevê outras diretrizes, como “desenvolver palestras sobre o aborto, com o objetivo de conscientizar as crianças e adolescentes sobre os riscos do aborto”, e “incentivar a realização de atividades para sensibilizar a população sobre os direitos no feto”.
Educação sexual: um caminho que ainda enfrenta resistência
O processo de formação de crianças e jovens nas escolas está totalmente atrelado ao conservadorismo vigente no nosso estado, pois manipula as estruturas e os componentes que são essenciais na educação. Na medida em que a bancada conservadora aprova ações que regulam cada vez mais a conduta dos profissionais da educação, os estudantes estão fadados a serem mais suscetíveis à manobras da direita brasileira.
Segundo uma professora de biologia da rede municipal de Goiânia, que preferiu ter sua identidade não revelada, apesar da extrema importância de abordar a educação sexual nas escolas para evitar que os jovens sejam vulneráveis a situações de abuso e violência, é algo difícil em virtude de ser um tema visto como tabu por grande parte da população.
No ano passado, o deputado federal Gustavo Gayer (PL) criou uma plataforma de denúncias na qual pais, geralmente muito conservadores, podem relatar condutas de professores que julgam inapropriadas.
“Na escola onde trabalho, os pais de alunos denunciaram livros de ciências utilizados na unidade, por não acharem adequadas as imagens do corpo humano que apareciam nele”, relata a professora.
Existe na educação sexual a possibilidade de mitigar os casos de violência e abuso de menores. Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança de 2023, crianças de 10 e 13 anos são 32,5% do número total de vítimas. Ou seja, se elas em sua maioria são dessa faixa etária, é totalmente necessário que elas tenham acesso a profissionais preparados para ensiná-las sobre consentimento e consciência corporal para evitar que sejam manipuladas por abusadores.
Feminismo e direitos humanos em luta pelo aborto seguro
Em um país onde a religião e o conservadorismo moldam a política, o debate sobre o aborto é uma ferida aberta. Milhares de mulheres e pessoas que gestam morrem anualmente em decorrência de procedimentos abortivos realizados em condições precárias, enquanto as forças conservadoras tentam cercear seus direitos reprodutivos. A história da luta pela descriminalização do aborto no Brasil é marcada por décadas de ativismo e resistência, mas a batalha ainda está longe de ser vencida.
Conforme dados do Ministério da Saúde, no país 1 milhão de abortos induzidos ocorrem todos os anos e levam 250 mil pessoas à hospitalização, demonstrando a fragilidade do sistema de saúde que, em tese, deveria atuar na proteção da vida. Além disso, é preciso fazer o recorte racial, na qual a maior parte dessas vítimas são negras e/ou indígenas, enquanto as que são brancas têm mais chances de sobrevivência em razão de privilégios sociais e financeiros.
Em conversa com Sônia Cleide, fundadora do grupo de Mulheres Negras Malunga e ferrenha ativista do movimento feminista negro, a ativista relatou que, na década de 1980, as organizações já discutiam o direito à vida para mulheres periféricas e defendiam a pauta da legalização do aborto. Cleide afirmou ter acompanhado diversos casos em que, mesmo após o estupro, a vítima era obrigada a conviver com o abusador. Segundo ela, essas situações poderiam ser facilmente revertidas se as mulheres ou meninas tivessem acesso à informação e ao aborto legal e seguro.
Os movimentos feministas de Goiás, especialmente o Bloco Não é Não, estão diariamente no fronte de batalha contra os ultradireitistas para garantir a permanência dos direitos reprodutivos. Através de campanhas, manifestações e ações de conscientização, o bloco age nas redes sociais e nas ruas expondo projetos regressistas em votação na Câmara dos Deputados que podem significar a diminuição de direitos reprodutivos.
Ato do Bloco Não é Não no campus samambaia da UFG contra a PL do estupro Fotos: Andressa Bueno
Cida Alves, trabalhou por cerca de 25 anos com o acompanhamento de vítimas de violência na Secretaria Municipal da Saúde de Goiânia. Ela é uma das idealizadoras do “Bloco Não é Não” e em entrevista com nossas repórteres fala sobre trazer assuntos relevantes, como os direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA+, de forma lúdica e divertida nas festividades de carnaval. E também declara que dessa maneira, tais questões têm mais impacto e conseguem se tornar presentes na vida do público de uma maneira leve.
O enfrentamento diário do feminismo para garantir o aborto seguro e legal em Goiás é marcada por desafios. A banca direitista e religiosa, fortalecida por um conservadorismo arraigado, dificulta a aprovação de leis que garantam esse direito. É comum o assédio moral contra ativistas e profissionais do HEMU por parte de grupos extremistas da direita, compostos em sua maioria por religiosos e políticos.
“O segmento moralista, ao invés de trabalhar a autonomia e a liberdade da mulher, reforça os valores conservadores. Foi isso que ascendeu na nossa sociedade, e hoje temos como símbolo desses valores a ex-Ministra Damares Alves. Ela foi vítima de violência sexual e ao invés de lutar pela responsabilização dos autores[...], ela captura este tema para fomentar a agenda da extrema direita brasileira, que vai contra os direitos das mulheres, da comunidade LGBTQIA+”, comenta Cida Alves a respeito da maneira como a ala conservadora age na política.
A crítica ao conservadorismo na política se estende também ao campo educacional. Enquanto Cida Alves ressalta como figuras públicas utilizam experiências pessoais dolorosas para promover uma agenda contrária aos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA+, Bruna Porto propõe uma abordagem proativa para combater esses retrocessos.
“Nós precisamos trabalhar muito nas escolas, ter um projeto de educomunicação, e realmente começar a fomentar a criticidade dos alunos desde a base”, responde Bruna, quando questionada sobre possíveis caminhos para evitar que o conservadorismo impeça discussões sobre aborto. Ela é radialista e membro da AMC (Associação Mulheres na Comunicação) desde a sua fundação em 2004 e atualmente ocupa o cargo de presidenta da associação.
Os movimentos feministas e de direitos humanos em Goiás desempenham um papel crucial na defesa do aborto seguro e legal. Através de suas ações, eles caminham para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, na qual as mulheres e pessoas que gestam tenham o direito de decidir sobre seus próprios corpos. A luta ainda é longa, mas a persistência e a organização das feministas são fundamentais para garantir a conquista desse direito.
Entre retrocessos e a busca por direitos garantidos por lei
A lei que trata o aborto no Brasil foi criada durante a elaboração do Código Penal de 1940, em um contexto histórico em que as mulheres não possuíam representação política e não tinham seus direitos sexuais e reprodutivos sendo discutidos em centros políticos. A criação dessa lei, que já permitia a legalidade do aborto em casos de estupro e de risco à vida, não estava vinculada à concessão de um direito de escolha e controle sobre o próprio corpo, mas à uma forma de proteção de honra e patrimônio para os homens. Por ser vista de maneira proprietária pelo homem, caso a mulher fosse tomada por outro homem, toda a reputação de seu marido e família estaria em jogo.
Mas até a criação do Código Penal de 1940, o aborto só era permitido em caso de risco de vida, o chamado aborto necessário. Todas as outras legislações criadas anteriormente previam ilegalidade à prática.
“Após a independência do país, em 1822, todos os Códigos Penais criados no Brasil até então criminalizaram o aborto. Somente com o código de 1940, passa a se ter exceções para algumas situações”, diz a professora Mariana Prandini Assis,
também pesquisadora sobre gênero e lutas por justiça social.
De acordo com Mariana, o debate sobre o aborto só passou a ser pautado a partir da óptica feminista e de direitos reprodutivos a partir da década de 1970, que até então era monopolizado pelos homens. Nesse período, houve uma grande mobilização desses grupos para que o tema fosse levado e discutido nos centros políticos, incluindo projetos de lei, como é o caso do texto redigido pelo deputado João Menezes (MDB-PA), em 1975. O projeto previa a legalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gravidez, mas não foi aprovado na Câmara dos Deputados.
“Com a elaboração da nova Constituição, em 1988, os grupos feministas tinham expectativas de garantir que o aborto fosse um direito constitucional [...] Um grupo de quase 30 mulheres, conhecido como “Lobby do Batom”, viu uma grande resistência da Assembleia Constituinte e a tentativa de implementação de um artigo, capitaneado por setores da Igreja Católica, que protegeria a vida desde a concepção. E isso significaria a impossibilidade de qualquer mudança futura no Código Penal”, explica Mariana.
Frente a esse impasse, os grupos feministas se reorganizaram e mudaram de estratégia, visando a implantação de serviços de aborto legal, que até então não existiam no país, mesmo para os casos que previam a legalidade da prática (gravidez resultante de violência sexual e risco de vida à pessoa gestante). A criação desse serviço no Brasil só aconteceu em 1989, em São Paulo, no hospital municipal Arthur Ribeiro de Saboya, conhecido como “Hospital do Jabaquara”. Para ter acesso ao aborto, a vítima de violação sexual deveria apresentar a cópia do Boletim de Ocorrência (BO) e o laudo pericial do Instituto Médico Legal (IML).

Reportagem do jornal feminista Mulherio, de 1981 (Fonte: Biblioteca Nacional Digital).
A estratégia dos grupos feministas passou a ser, então, a tentativa de mudanças progressivas da lei penal, e de alterá-la aos poucos, até que o cenário fosse transformado.
Apesar da lei brasileira permitir a interrupção da gravidez decorrente de estupro desde a década de 1940, foi apenas em 1999 que houve uma regulamentação nacional do aborto, com o lançamento de uma norma técnica que estimulava e normatizava a estruturação dos serviços. A norma foi reeditada em 2005, quando houve a implantação da maior parte dos serviços. Em 2009, de acordo com dado oficial divulgado pelo Ministério da Saúde, existiam 60 serviços de aborto previstos em lei estruturados no país.
No estado de Goiás, o Hospital Estadual da Mulher (HEMU) é o único hospital da rede pública a realizar o procedimento legalizado.
Mais recentemente, em junho de 2024, o projeto de lei 1904, que retrocede em termos de garantia aos direitos reprodutivos de quem gesta, foi apresentado na Câmara dos Deputados. Apresentado por Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros deputados, o PL 1904 equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, mesmo em casos de gravidez resultante de estupro. Caso aprovado pelos parlamentares, o aborto realizado após 22 semanas, mesmo em casos de estupro, será punido com 6 a 20 anos de reclusão.
O PL prevê maior pena para vítimas de violência sexual, caso façam o aborto após as 22 semanas, do que para o agressor, cuja reclusão é de 8 a 15 anos. Até o final do mês de junho, o projeto contava com a assinatura de 56 deputados, a maioria do Partido Liberal.
Desde que foi aprovado para tramitação em regime de urgência na Câmara dos Deputados, o projeto de lei 1904 gerou uma série de debates e protestos, muitos convocados por movimentos feministas.
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